sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O Corpo como Objeto e Instrumento de Aprendizagem


O sentido dos gestos não é dado, mas compreendido. É através do meu corpo que compreendo o outro. Quer se trate do corpo do outro ou do meu próprio corpo, eu não tenho outro meio de conhecer a não ser vivê-lo. (Merleau-Ponty)
É na educação psicomotora que buscamos profilaticamente dar espaço ao mundo psicomotor da criança, dar espaço para sua expressão através das atividades corporais lúdicas, espontâneas e livres. É a partir da relação psicomotora que o educador ajuda a criança em sua expressão pessoal, em suas pesquisas, permitindo-lhe exprimir suas vivências afetivas e, sobretudo, manifestar o seu desejo.
A criança possui – e é – um corpo que fala e se estrutura, com a linguagem estruturando, assim, o próprio sujeito.
Dois níveis de corporalidade
O sujeito vive sua corporalidade em dois níveis: um estruturado com atividades motoras elaboradas tanto no sentido da busca de conhecimento, inicialmente sensório-motor e, a seguir, lógico, racional; outro, fantasmático, é o nível do inconsciente, dos desejos e conflitos vividos na relação com o outro. Esses dois níveis de vivência corporal se inter-relacionam e têm mútua interferência em qualquer manifestação humana. Sabemos que o período sensório-motor é uma fase essencial, pois é através da vivência corporal que a criança adquirirá mais conhecimento e autonomia sobre si mesma.
Pudemos observar, em creches, crianças de pouca idade com personalidades bem estruturadas, com perfis de comportamento instalados e difíceis de serem modificados; encontramos também crianças atrasadas no seu desenvolvimento psicomotor e outras ainda que se mantêm sem nenhuma possibilidade para o outro, estando muitas vezes, portanto, defasadas em relação ao seu grupo escolar.
A aula de psicomotricidade relacional é um momento livre no qual, utilizando objetos variados como bolas, panos, caixas, etc., a criança pode inventar, colocar seus desejos e se relacionar, fazendo uso de toda a sua motricidade global. Através dessa atividade motora, a criança usa o seu corpo colocando em jogo componentes motores, afetivos e mentais e passa a se conhecer mais, a Ter cada vez mais domínio sobre si mesma, da forma que mais gosta – brincando.
Uma experiência preventiva
Essa nova disponibilidade de atenção dentro da escola pode ser exemplificada com nossa experiência, descrita a seguir, com grupos de crianças de três anos, em uma creche onde são realizadas semanalmente aula de educação psicomotora. Nas primeiras aulas, as crianças utilizaram bolas – é um material que favorece a locomoção e serve como mediador da relação com os outros. O clima era de alegria e descontração, os pequenos corriam, explorando o espaço disponível e criando situações novas; toda a movimentação global se fazia de maneira espontânea.
Entretanto, nessas aulas sobressaía uma criança tímida, que se colocava totalmente à parte, não demonstrando nenhum dinamismo corporal (correr, pular, rolar, etc.). A pouca comunicação com os colegas era feita sempre de forma impessoal. Assim, ela quase não brincava com as outras crianças, preferia ficar sozinha e, às vezes, quando agredida por companheiros, não conseguia se defender. Procurando conhecer mais essa garota, pudemos observar que sua família tem a tendência de superprotegê-la e prefere uma educação mais intelectual em detrimento de uma comunicação mais autêntica, mais afetiva. Nas aulas seguintes, sua atitude continuava a ser a de observadora; olhar desinteressado, expressão de indiferença e até mesmo um certo desprezo pelas brincadeiras que iam surgindo.

Brincar: mediador para a relação com o objeto
É importante ressaltar que a dinâmica da aula dá oportunidade às crianças de se relacionar com o objeto – com o outro, com o tempo e com o espaço – espontaneamente, através do desejo da criança, onde o brincar é o disparador ou o mediador para essa relação.
A garota inibida começa, então, a receber bolas e, aos poucos, mesmo sem sair do seu lugar, começa a jogar, demonstrando simbolicamente a recusa de dar-se por inteiro. Observamos que esse retraimento continuava, mas já não caracterizado como indiferença e, sim, como desejo recalcado, até que, em uma sessão na qual usamos lençóis e a dinâmica da turma acontecia de forma intensa, um grupo decidiu montar uma imensa cabana. Aos poucos, todos se envolveram nesse projeto, inclusive a menina, que participou com empenho e prazer.
Verificamos que, a partir de então, a participação da menina foi crescente: já demonstrava interesse em utilizar o material que lhe era oferecido. Com rapidez ela vai reencontrando o dinamismo inerente à sua idade, já corre, pula, ri e é bastante ativa. Gradualmente perdeu o medo do contato, das relações corporais, afetivas ou agressivas.
Hoje essa evolução pode ser verificada em todo o comportamento dessa criança, que está sociável e não se isola mais: sem perder nada de seu potencial intelectual, ela descobriu uma nova dimensão que lhe permitiu desabrochar. Sua postura corporal se modificou, mostra confiança e disponibilidade para participar das atividades.
O papel de facilitador
No trabalho com crianças, o diálogo corporal não se instala apenas através do agir, mas também do sentir. A pedagogia se transforma a partir do momento em que se abre esse espaço psicomotor na escola. A aprendizagem de conceitos, a elaboração de raciocínios e a alfabetização, em consonância com o material afetivo e psicomotor, vivenciados como atividades livres de educação psicomotora, tornam-se parte do crescimento global da criança.
O objetivo é dar sempre à criança o poder de seu próprio desenvolvimento. Nosso papel será, portanto, o de acompanhar a criança nas suas explorações: olhar, estimular, motivar e fornecer o material de que a criança necessita, que desenvolva sua linguagem corporal, desenvolvendo e permitindo a imagem e consciência do corpo, os movimentos espontâneos, expressivos e representativos.
A psicomotricidade é um corpo em relação; a atividade motora é uma porta aberta ao desenvolvimento da livre comunicação . (A. Lapierre).
Sônia Lea Dorfman.

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